O ponto e a linguagem
Revista SescTV entrevista Isa Grinspum Ferraz
Socióloga e cineasta, Isa começou sua carreira em 1980, na fundação Roberto Marinho; Atuou com Darcy Ribeiro, na década de 1990, escrevendo e dirigindo o programa Escola pela TV, na Rede Manchete. Concebeu e dirigiu a série O Povo Brasileiro, baseada na obra de Darcy Ribeiro, exibida no canal GNT e na TV Cultura, e as séries Intérpretes do Brasil e O Valor do Amanhã, para o programa Fantástico da Rede Globo. Seu primeiro longa-metragem, o documentário Marighella, conta a história de seu tio, o guerrilheiro Carlos Marighella. Em 2015, Isa dirige a série Galáxias — Olhares Sobre o Brasil, realizada pelo SescTV e pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
De que forma a Sociologia e o Cinema influenciaram sua trajetória?
Eu sempre fui cinéfila. Desde pequena, tinha essa pulsão pelo cinema, ia todos os dias após o colégio. Mas quis estudar Ciências Sociais porque venho de uma família de tradição humanista, de esquerda, não tinha como fugir. Quem me levou a juntar as duas coisas foi Lina Bo Bardi. Trabalhei com ela durante dois anos, organizando seus arquivos. Eu ainda estava na faculdade, e Lina me disse: “Você tem que trabalhar com cinema. Sua cabeça funciona por imagens”. Nunca havia pensado nisso. Ela me indicou a alguns amigos que trabalhavam na Globo, e entrei para a Fundação Roberto Marinho, onde trabalhei por dez anos com séries de documentários. Depois, conheci Darcy Ribeiro, com quem trabalhei durante 12 anos, e quem me inspirou a fazer a série O Povo Brasileiro. Esses temas sociológicos e antropológicos sempre permearam minha vida, e meu trabalho acabou resultando nisso. Em 2003, fui chamada para desenvolver o Museu da Língua Portuguesa, quando entrei enfim para a área dos museus. Ao longo de minha trajetória, pude circular por essas áreas e, hoje, estou sempre intercalando trabalhos.
Qual a contribuição de Darcy Ribeiro e Lina Bo Bardi em seus trabalhos?
Trabalhar com Lina e com Darcy foi um privilégio absoluto. Essa foi minha escola, na verdade. Reconheço a importância de minha formação, mas trabalhar com Lina e Darcy me abriu um horizonte do mundo e do Brasil. O olhar multidisciplinar que ambos tinham me possibilitou uma nova forma de pensar o país. Eles eram muito especiais e pensavam o mundo de uma maneira livre. Eu não consigo ter nem um tiquinho daquela liberdade que os dois tinham, obviamente, mas isso me deu um desejo de querer ver e pensar o Brasil para todos. Meu objetivo não é fazer um trabalho acadêmico, não é fazer algo para os pares. Minha preocupação sempre foi tentar usar as linguagens para falar a todo mundo, sem perder a complexidade dos temas.
A televisão é um meio para a discussão desse pensamento sobre o Brasil e a sociedade atual?
Não só a televisão, mas todos os meios audiovisuais, ampliados agora pelas redes sociais. A vantagem da TV é conseguir unir emoção e reflexão de uma maneira mais orgânica, com camadas de imagem, de som e de texto que se somam. Minha pesquisa de linguagem vai sempre nesse sentido: criar camadas de significados diferentes, que todos possam compreender de algum jeito em algum lugar. A pessoa pode não entender um texto sofisticado, mas a imagem, a beleza e força da imagem podem capturar a pessoa e levá-la à reflexão, à vivência de emoções.
Existe espaço para reflexão na TV aberta?
Precisamos de espaços mais amplos para uma reflexão maior, com tempo para acompanhar um pensamento se desenvolvendo, para amadurecer ideias. Mas existem boas oportunidades na TV aberta que não podemos perder. Tive uma experiência muito interessante quando fui convidada a fazer a série O Valor do Amanhã, baseada na obra do sociólogo e economista Eduardo Giannetti, para o Fantástico. Foi estranho, nem eu, nem eles achávamos que ia dar certo. Quando apresentei o primeiro roteiro de dez episódios, o diretor recusou. Insisti, queria experimentar. Fizemos o piloto e foi ao ar. Eles me deixaram fazer o segundo; a audiência cresceu. Fiz o terceiro e cresceu novamente. Um quadro que abria com o ator Matheus Nachtergaele declamando trechos de Machado de Assis, de Schopenhauer, tratando de poesia, de filosofia, de questões sobre o tempo, chegou a ser líder de audiência em um programa de TV aberta. Ou seja, todo mundo tem capacidade de entender tudo, se você achar o ponto e a linguagem. É a maneira como você trata as coisas, sem menosprezar a inteligência do público, que faz a diferença.
E como fez para achar o ponto e a linguagem no cinema, com um filme sobre Marighella?
Foi difícil. Escrevi o roteiro de Marighella em 1986, e o depositei na Biblioteca Nacional. Ele foi aprovado na lei Mendonça, mas não consegui apoio na época para fazer um filme como esse. Desde pequena, quando soube que meu tio Carlos era o Marighela, fiquei com a pergunta na cabeça: como assim, o cara é bandido, mas é meu tio? Quando seu centenário se aproximou, eu senti que tinha de retomar o projeto. O roteiro antigo foi usado como base, mas foi muito difícil achar o tom do filme, pois tinha de contar uma história para alcançar aqueles que nem sabiam que esse homem existiu. Tive a colaboração do Mano Brown, que fez uma canção espetacular e abriu a porta para um universo gigante de pessoas que agora sabem quem foi Marighella. Wagner Moura fez outro filme sobre meu tio e Caetano Veloso também compôs uma música. Fiquei satisfeita porque meu trabalho acabou gerando frutos importantes e uma discussão maior.
A série Galáxias — Olhares Sobre o Brasil também amplia a discussão e reflexão sobre sociedade brasileira. Como surgiu a proposta do programa?
Ao completar seus 50 anos, o IEB — Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo — decidiu abrir seus arquivos à sociedade e pensou em fazê-lo a partir de uma série para a TV. Fui convidada para escrever o roteiro e entrei em contato com o Sesc São Paulo para viabilizar a produção. Chegamos a doze temas fundamentais para pensar o Brasil atual e buscamos pessoas que enriquecessem a discussão com seus olhares particulares, como o sociólogo Jessé Souza, o filósofo Francisco Bosco, o rapper Emicida, o dirigente do MST¬ Jaime Amorim, o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, entre outros. Procuramos nomes legítimos, cada um em sua área. Convidei ainda Cao Guimarães para se expressar através de seus vídeos, o coletivo Mídia NINJA para ilustrar as discussões com suas fotos e ainda o DJ Dolores para compor a trilha da série. Todos são depoentes. A ideia era essa: caras muito bons representando diferentes pontos de vista sobre importantes questões sociais.